
A COMPOSIÇÃO NA EDUCAÇÃO MUSICAL:
SENTIDOS, CAMINHOS E DESCOBERTAS
Roberto Stepheson A. Machado
professordemusica@yahoo.com.br
Rio de Janeiro, outubro de 2009
Resumo: O propósito deste artigo é refletir sobre a composição musical como componente significante do ensino musical no âmbito da escola regular, principalmente por considerar o universo musical do educando, por exteriorizar seus pensamentos musicais, por permitir-lhe adentrar efetivamente em uma prática relevante e por dar-lhe voz no espaço escolar, ao mesmo tempo em que lhe propicia uma aprendizagem ampla, levando-o a conhecer novas concepções musicais.
Palavras-chave: educação musical; ensino da música; composição musical.
Abstract: The composition in music education: directions, pathways and discoveries.
The purpose of this article is to reflect on the musical composition as a significant component in music education views within the regular school. Moreover, it especially considers the musical universe of the students by externalizing their musical thoughts, thus allowing them to actually enter into the musical practice. In addition, students are capable to express their voice at the institution, which at the same time provides a broad musical learning, and consequently leads them to meet new musical conceptions.
Keywords: music education, teaching music, composition.
A composição pode e deve ser vista como uma atividade válida no desenvolvimento e construção musical do educando, pois ratifica conceitos apreendidos, direciona o aluno a práticas musicais e estimula o exercício da liberdade de decisões musicais. Se for realizada coletivamente, também possibilita a argumentação e a tolerância, e promove a visualização de sotaques diversos, de múltiplos olhares.
Trabalhar com a composição musical permite que se lide com novas experiências, possibilitando a exteriorização de pensamentos musicais, a percepção do universo sonoro, além de ser um elemento de motivação, pois é a criação que emerge e que é evidenciada.
Compreendida de forma mais abrangente, a composição pode ser um ato de criação, invenção e construção. Para Schafer (1991, p. 290), “somos os arquitetos dos sons e estamos interessados em organizar e equilibrar sons interessantes para produzir os efeitos estéticos desejados”.
Sobre a importância e os caminhos que a composição musical propicia, Swanwick (2003, p. 68) nos fala que se trata de um momento onde o praticante delibera suas ações e então pode “escolher não somente como, mas o que tocar ou cantar”, dando-lhe ainda mais abertura na “escolha cultural”. E, referindo-se aos sotaques e à inserção da música na sociedade – que aqui direciono à escola, outro reduto cultural do aluno –, o autor comenta:
“Sotaques” diferentes são percebidos como igualmente válidos, e nenhum é, essencialmente, bom. Em vez disso, pergunta-se o que é bom para um contexto social específico. O significado e o valor da música nunca podem ser intrínsecos e universais, mas estão ligados ao que é socialmente situado e culturalmente mediado. Sob esse ponto de vista, o valor musical reside em seus usos culturais específicos [...]. (Ibidem, p. 39)
Schafer (1991, p. 23), referindo-se à necessidade de se trabalhar a acuidade musical e a atenção que devemos ter com os atributos dados à música, considera que tendemos a fazer associações entre “certas manifestações artísticas” e “certas pessoas ou grupos de pessoas”, afetando, assim, a nossa impressão e avaliação do fenômeno. E continua:
Imagino frequentemente se seria possível dissociar a música dos seres humanos e apreciá-la assepticamente em sua forma pura. Não creio que seja inteiramente possível. Mas acho que às vezes é necessário experimentar e ver por esse lado os nossos gostos musicais e desenvolvê-los para mudá-los. Em outras palavras, deixem a música falar por si mesma, não por associações.
De qualquer forma, a música é música com ou sem associações. E também podemos entender que o ouvinte jamais poderá captar, pelo menos através da música, o sentimento ou sensação vivida pelo compositor no momento da criação. Até porque aquilo que se desencadeia em uma pessoa não acontece necessariamente em outra.
Assim como as outras artes, a música pode aflorar sentimentos capazes de nos conduzir às mais longínquas estradas, musicais ou não. A música, por si só, é música, mas uma emoção pode inexplicavelmente ser a mais bela das músicas já tocadas ou escutadas por nós, em um único momento, inesquecível.
Quando me refiro ao ouvinte, estou abordando e confluindo o leigo e o indivíduo que guarda maior aproximação, maior acuidade, ou algum tipo de prática musical. Vou, contudo, delimitar e tomar como eixo de construção do discurso somente o compositor e o ouvinte, dois polos equidistantes, mas que se validam e se completam.
O professor Marcos Vinício Nogueira, do Departamento de Composição da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, referindo-se ao ouvinte e à sua percepção do fenômeno musical, nos diz que a produção deste agente, que não depende de qualquer atuação física, “caracteriza-se por um conjunto de atividades perceptivas, intelectuais e emocionais que resultam em memórias, em conjuntos de imagens mentais fugazes e altamente incomunicáveis, em sentimentos e em expectativas (antecipações)”. Para o professor, quanto maior for o envolvimento do ouvinte com os modelos de criação, execução e interpretação do invólucro musical, “mais forte será a impressão de comunicação – de que algo passa, no ato da escuta” (NOGUEIRA, 2003).
À medida que vai escutando, o ouvinte reordena os sons que foram organizados e trabalhados pelo compositor, compartilhando-os com os demais sons que está recebendo naquele momento, e que, juntamente com toda a bagagem auditiva que construiu ao longo de sua vida, interferirão nessa nova escuta.
Para Duarte (2001, p. 87), a música é o elo entre o ouvinte e o compositor. Sua “materialidade se constrói nos encontros de cada audição, e esta é materialmente marcada pela concretude do produto que se expõe como ‘acabado’, por ser resultado do trabalho do compositor”. A autora salienta ainda que “o ouvinte trabalha para reconstruir este produto baseado também em outras audições e em suas próprias percepções”.
E a emoção? Como interfere na música? Por muito tempo, a tradição musical validou-se tendo também como premissa a emoção: músicas evocativas (religiosas), descritivas, épicas, amorosas e até mesmo terapêuticas. E o que seria isso? O compositor, num primeiro momento, talvez inspirado e submerso em algum tipo de arrebatamento sentimental, pode ter sido influenciado e, com isso, ter afetado o desfecho de sua obra. Mas a composição foi um ato pensado, concebido e trabalhado. Porém, o estado de espírito do compositor, a sensação, a inspiração – ou a falta destes – não necessariamente coincidem com os do ouvinte.
No entanto, o compositor pode propositalmente querer provocar o ouvinte com a sua música. Segundo Schafer (1991, p. 31), “a sucessão particular de sons que o compositor escolhe – sua tessitura, dinâmica, instrumentação –, tudo isso dá um certo caráter à melodia e, por sua vez, obtém uma certa resposta emocional dos ouvintes”.
Muitas músicas e teorias[1], então, foram sendo criadas e associadas a textos – como libretos de óperas –, festividades e até mesmo a estados de emoção. Quer dizer, foram dados sentidos a essas músicas de, por exemplo, tristeza, alegria, elevação espiritual ou amor. E talvez elas se prestassem, pelo menos no senso comum, a uma intenção de passar sentimentos.
Isto não quer dizer que a música não pode desempenhar esse papel (fator não preponderante) em algum momento. Mas acontece que, pelo hábito, foi-se formulando um pensamento sobre a música como emoção, ou de que ela provavelmente passa algum tipo de sentimento. Significado este confundido ainda com o movimento corporal ou, mais especificamente, com a dança, pois ao longo dos anos foram adaptadas ou compostas peças musicais para balés e coreografias que correspondiam a esse pensamento.
Quem dança realiza movimento e sente algo. Isto não pode ser negado. Da mesma forma, quando escutamos determinados sons sentimos os movimentos trazidos pelas vibrações sonoras. Todavia, o que acontece é que quem dança pode sentir-se feliz ou triste, independentemente da música que escute ao dançar. Em contrapartida, a dança – arte do movimento – induz a uma organização rítmica que, em alguns casos, é passível de transcrição e decodificação através dos signos musicais (escrita convencional e não-convencional).
A partir disso, possivelmente, a música foi recebendo a conotação de que poderia alegrar e entristecer, enaltecer e evocar, pois movimento significaria alegria e, no outro polo, inércia indicaria tristeza. O mesmo ocorreu com os modos ou as tonalidades: maior para a alegria, menor para a tristeza. Não o significado musical, mas o uso intensificado de clichês induziu o ouvinte, ao longo dos tempos, a intuir determinados padrões sonoro-musicais.
Repassando o que acabei de trazer, a composição, além de se apropriar de todo um arcabouço existente, permite um aprimoramento estético musical e se faz necessária à prática pedagógico-musical, não somente nas universidades e escolas de música, mas também no ensino regular, momento espontâneo e frutífero da aprendizagem. É preponderante lembrar que o educando é também um assíduo ouvinte e está envolvido em práticas sociais diversas, como danças, jogos, uso de tecnologias e de linguagens midiáticas, entre outras.
No entanto, é sabido que a teorização e o enfoque histórico são priorizados na sala de aula, ficando a prática e a criação musical relegadas a um plano secundário, insípido, ou simplesmente inexistem enquanto atividades a serem desenvolvidas. Por isso, comungo com Swanwick (2003, p. 68), que afirma o seguinte:
A composição é, portanto, uma necessidade educacional, não uma atividade opcional para ser desenvolvida quando o tempo permite. Ela dá ao aluno uma oportunidade para trazer suas próprias idéias à microcultura da sala de aula, fundindo a educação formal com a “música de fora”. Os professores, então, tornam-se conscientes não somente das tendências musicais dos alunos, mas também, até certo ponto, de seus mundos social e pessoal.
Ao deparar-se com o processo composicional, o educando pode revisitar os elementos trabalhados nas aulas, misturando-os à sua vivência musical já incorporada, confrontando-os e transcendendo-os. E isso ocorre propositalmente ou não, tanto na troca de experiências com os demais componentes de um grupo como em uma atividade de composição individual. Os elementos serão escolhidos e montados por ele, de acordo com o seu nível musical, naquele momento.
Musicalmente falando e voltando-se para o ensino da música atual, Gainza (1988, p. 101) nos fala que “o objetivo específico da educação musical é musicalizar, ou seja, tornar um indivíduo sensível e receptivo ao fenômeno sonoro, promovendo nele, ao mesmo tempo, respostas de índole musical”. Schoenberg (1993, p. 27), referindo-se à composição musical – mas que estendo ao ensino da música de modo geral, pois denota sentido semelhante –, nos diz que os “requisitos essenciais para a criação de uma forma musical compreensível são a lógica e a coerência”.
Paz (1995, p. 17), lembrando as propostas de Villa-Lobos, afirma que a música do compositor “deve ser a revelação verdadeira de sua alma”. Swanwick (1979, p. 43) assinala que o processo composicional permite diversas “formas de invenção musical”. O autor profere também que “tocar e compor podem complementar-se, e novos insights adquiridos em um domínio podem servir a outro” (2003, p. 95). A música, de acordo com Fregtman (1993, p. 60), “é uma capacidade inerente ao ser humano e todos podemos encontrar um veículo de expressão sonora autêntico”.
Aproveitando e partindo da pré-experiência musical e cultural do aluno, a escola pode instigá-lo a conhecer e a vivenciar novas compreensões musicais, alargando seu universo cultural e ajudando-o a perceber/conhecer parte da diversidade e pluralidade cultural. O importante é que a escola, seu novo reduto cultural, possa garantir-lhe um espaço para vivenciar e compartilhar práticas musicais distintas, seja ele possuidor ou não de uma habilidade musical.
A música instiga o educando – como curioso e sedento em aprender que é – a experimentar e criar, ajudando-o a formular pensamentos e ações imprescindíveis à sua formação. Pensar em música enquanto movimento artístico dinâmico e social é se aperceber do riquíssimo universo sonoro-musical, propulsor de novos caminhos, de novos paradigmas – educacional, mas também social e científico. A composição musical permite que o aluno exteriorize seus pensamentos, e isto não apenas no âmbito musical, pois ele tem ainda a oportunidade se comunicar com a sociedade, com a comunidade local, com a escola e com ele mesmo.
Sendo assim, nesse conglomerado que acabei de expor, podem ser trabalhados gêneros, ritmos, texturas, construções melódicas, textos, prosódias, performances instrumentais e vocais, além de aspectos estilísticos, históricos e socioeducativos imersos. Tudo que possa trazer sentido e interconexões de ideias afloradas no espaço musical escolar de múltiplas possibilidades.
Referências
DUARTE, Mônica. A prática interacionista em música: uma proposta pedagógica. Debates – Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, Rio de Janeiro, n. 4, p. 75-94, 2001.
FREGTMAN, Carlos D. O tao da música. 9. ed. São Paulo: Pensamento, 1993.
GAINZA, Violeta Hemsy de. Estudos de psicopedagogia musical. 3. ed. Tradução de Beatriz A. Cannabrava. São Paulo: Summus, 1988.
NOGUEIRA, Marcos. O imaginário metafórico da escuta. Semiosfera - Comunicação e Cultura, Seção Imaginário Plural, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, ano 3, n. 4-5, 2003. Disponível em:
PAZ, Ermelinda A. Um estudo sobre as correntes pedagógico-musicais brasileiras. 2. ed. Rio de Janeiro: Cadernos Didáticos UFRJ, n. 11, 1995.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. Tradução de Marisa Trenche de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva e Maria Lúcia Pascoal. São Paulo: Fundação UNESP,1991.
SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. Tradução de Eduardo Seincman. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1993.
SWANWICK, Keith. A basis for music education. London: Routledge, 1979.
______. Ensinando música musicalmente. Tradução de Alda Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003.
[1] No período Barroco surgiu a Teoria dos Afetos, preconizando que a música era capaz de provocar e representar emoções, doutrina esta seguida por vários compositores.