quinta-feira, 4 de março de 2010



A COMPOSIÇÃO NA EDUCAÇÃO MUSICAL:

SENTIDOS, CAMINHOS E DESCOBERTAS


Roberto Stepheson A. Machado

professordemusica@yahoo.com.br

Rio de Janeiro, outubro de 2009


Resumo: O propósito deste artigo é refletir sobre a composição musical como componente significante do ensino musical no âmbito da escola regular, principalmente por considerar o universo musical do educando, por exteriorizar seus pensamentos musicais, por permitir-lhe adentrar efetivamente em uma prática relevante e por dar-lhe voz no espaço escolar, ao mesmo tempo em que lhe propicia uma aprendizagem ampla, levando-o a conhecer novas concepções musicais.

Palavras-chave: educação musical; ensino da música; composição musical.

Abstract: The composition in music education: directions, pathways and discoveries.

The purpose of this article is to reflect on the musical composition as a significant component in music education views within the regular school. Moreover, it especially considers the musical universe of the students by externalizing their musical thoughts, thus allowing them to actually enter into the musical practice. In addition, students are capable to express their voice at the institution, which at the same time provides a broad musical learning, and consequently leads them to meet new musical conceptions.

Keywords: music education, teaching music, composition.



A composição pode e deve ser vista como uma atividade válida no desenvolvimento e construção musical do educando, pois ratifica conceitos apreendidos, direciona o aluno a práticas musicais e estimula o exercício da liberdade de decisões musicais. Se for realizada coletivamente, também possibilita a argumentação e a tolerância, e promove a visualização de sotaques diversos, de múltiplos olhares.

Trabalhar com a composição musical permite que se lide com novas experiências, possibilitando a exteriorização de pensamentos musicais, a percepção do universo sonoro, além de ser um elemento de motivação, pois é a criação que emerge e que é evidenciada.

Compreendida de forma mais abrangente, a composição pode ser um ato de criação, invenção e construção. Para Schafer (1991, p. 290), “somos os arquitetos dos sons e estamos interessados em organizar e equilibrar sons interessantes para produzir os efeitos estéticos desejados”.

Sobre a importância e os caminhos que a composição musical propicia, Swanwick (2003, p. 68) nos fala que se trata de um momento onde o praticante delibera suas ações e então pode “escolher não somente como, mas o que tocar ou cantar”, dando-lhe ainda mais abertura na “escolha cultural”. E, referindo-se aos sotaques e à inserção da música na sociedade – que aqui direciono à escola, outro reduto cultural do aluno –, o autor comenta:

“Sotaques” diferentes são percebidos como igualmente válidos, e nenhum é, essencialmente, bom. Em vez disso, pergunta-se o que é bom para um contexto social específico. O significado e o valor da música nunca podem ser intrínsecos e universais, mas estão ligados ao que é socialmente situado e culturalmente mediado. Sob esse ponto de vista, o valor musical reside em seus usos culturais específicos [...]. (Ibidem, p. 39)

Schafer (1991, p. 23), referindo-se à necessidade de se trabalhar a acuidade musical e a atenção que devemos ter com os atributos dados à música, considera que tendemos a fazer associações entre “certas manifestações artísticas” e “certas pessoas ou grupos de pessoas”, afetando, assim, a nossa impressão e avaliação do fenômeno. E continua:

Imagino frequentemente se seria possível dissociar a música dos seres humanos e apreciá-la assepticamente em sua forma pura. Não creio que seja inteiramente possível. Mas acho que às vezes é necessário experimentar e ver por esse lado os nossos gostos musicais e desenvolvê-los para mudá-los. Em outras palavras, deixem a música falar por si mesma, não por associações.

De qualquer forma, a música é música com ou sem associações. E também podemos entender que o ouvinte jamais poderá captar, pelo menos através da música, o sentimento ou sensação vivida pelo compositor no momento da criação. Até porque aquilo que se desencadeia em uma pessoa não acontece necessariamente em outra.

Assim como as outras artes, a música pode aflorar sentimentos capazes de nos conduzir às mais longínquas estradas, musicais ou não. A música, por si só, é música, mas uma emoção pode inexplicavelmente ser a mais bela das músicas já tocadas ou escutadas por nós, em um único momento, inesquecível.

Quando me refiro ao ouvinte, estou abordando e confluindo o leigo e o indivíduo que guarda maior aproximação, maior acuidade, ou algum tipo de prática musical. Vou, contudo, delimitar e tomar como eixo de construção do discurso somente o compositor e o ouvinte, dois polos equidistantes, mas que se validam e se completam.

O professor Marcos Vinício Nogueira, do Departamento de Composição da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, referindo-se ao ouvinte e à sua percepção do fenômeno musical, nos diz que a produção deste agente, que não depende de qualquer atuação física, “caracteriza-se por um conjunto de atividades perceptivas, intelectuais e emocionais que resultam em memórias, em conjuntos de imagens mentais fugazes e altamente incomunicáveis, em sentimentos e em expectativas (antecipações)”. Para o professor, quanto maior for o envolvimento do ouvinte com os modelos de criação, execução e interpretação do invólucro musical, “mais forte será a impressão de comunicação – de que algo passa, no ato da escuta” (NOGUEIRA, 2003).

À medida que vai escutando, o ouvinte reordena os sons que foram organizados e trabalhados pelo compositor, compartilhando-os com os demais sons que está recebendo naquele momento, e que, juntamente com toda a bagagem auditiva que construiu ao longo de sua vida, interferirão nessa nova escuta.

Para Duarte (2001, p. 87), a música é o elo entre o ouvinte e o compositor. Sua “materialidade se constrói nos encontros de cada audição, e esta é materialmente marcada pela concretude do produto que se expõe como ‘acabado’, por ser resultado do trabalho do compositor”. A autora salienta ainda que “o ouvinte trabalha para reconstruir este produto baseado também em outras audições e em suas próprias percepções”.

E a emoção? Como interfere na música? Por muito tempo, a tradição musical validou-se tendo também como premissa a emoção: músicas evocativas (religiosas), descritivas, épicas, amorosas e até mesmo terapêuticas. E o que seria isso? O compositor, num primeiro momento, talvez inspirado e submerso em algum tipo de arrebatamento sentimental, pode ter sido influenciado e, com isso, ter afetado o desfecho de sua obra. Mas a composição foi um ato pensado, concebido e trabalhado. Porém, o estado de espírito do compositor, a sensação, a inspiração – ou a falta destes – não necessariamente coincidem com os do ouvinte.

No entanto, o compositor pode propositalmente querer provocar o ouvinte com a sua música. Segundo Schafer (1991, p. 31), “a sucessão particular de sons que o compositor escolhe – sua tessitura, dinâmica, instrumentação –, tudo isso dá um certo caráter à melodia e, por sua vez, obtém uma certa resposta emocional dos ouvintes”.

Muitas músicas e teorias[1], então, foram sendo criadas e associadas a textos – como libretos de óperas –, festividades e até mesmo a estados de emoção. Quer dizer, foram dados sentidos a essas músicas de, por exemplo, tristeza, alegria, elevação espiritual ou amor. E talvez elas se prestassem, pelo menos no senso comum, a uma intenção de passar sentimentos.

Isto não quer dizer que a música não pode desempenhar esse papel (fator não preponderante) em algum momento. Mas acontece que, pelo hábito, foi-se formulando um pensamento sobre a música como emoção, ou de que ela provavelmente passa algum tipo de sentimento. Significado este confundido ainda com o movimento corporal ou, mais especificamente, com a dança, pois ao longo dos anos foram adaptadas ou compostas peças musicais para balés e coreografias que correspondiam a esse pensamento.

Quem dança realiza movimento e sente algo. Isto não pode ser negado. Da mesma forma, quando escutamos determinados sons sentimos os movimentos trazidos pelas vibrações sonoras. Todavia, o que acontece é que quem dança pode sentir-se feliz ou triste, independentemente da música que escute ao dançar. Em contrapartida, a dança – arte do movimento – induz a uma organização rítmica que, em alguns casos, é passível de transcrição e decodificação através dos signos musicais (escrita convencional e não-convencional).

A partir disso, possivelmente, a música foi recebendo a conotação de que poderia alegrar e entristecer, enaltecer e evocar, pois movimento significaria alegria e, no outro polo, inércia indicaria tristeza. O mesmo ocorreu com os modos ou as tonalidades: maior para a alegria, menor para a tristeza. Não o significado musical, mas o uso intensificado de clichês induziu o ouvinte, ao longo dos tempos, a intuir determinados padrões sonoro-musicais.

Repassando o que acabei de trazer, a composição, além de se apropriar de todo um arcabouço existente, permite um aprimoramento estético musical e se faz necessária à prática pedagógico-musical, não somente nas universidades e escolas de música, mas também no ensino regular, momento espontâneo e frutífero da aprendizagem. É preponderante lembrar que o educando é também um assíduo ouvinte e está envolvido em práticas sociais diversas, como danças, jogos, uso de tecnologias e de linguagens midiáticas, entre outras.

No entanto, é sabido que a teorização e o enfoque histórico são priorizados na sala de aula, ficando a prática e a criação musical relegadas a um plano secundário, insípido, ou simplesmente inexistem enquanto atividades a serem desenvolvidas. Por isso, comungo com Swanwick (2003, p. 68), que afirma o seguinte:

A composição é, portanto, uma necessidade educacional, não uma atividade opcional para ser desenvolvida quando o tempo permite. Ela dá ao aluno uma oportunidade para trazer suas próprias idéias à microcultura da sala de aula, fundindo a educação formal com a “música de fora”. Os professores, então, tornam-se conscientes não somente das tendências musicais dos alunos, mas também, até certo ponto, de seus mundos social e pessoal.

Ao deparar-se com o processo composicional, o educando pode revisitar os elementos trabalhados nas aulas, misturando-os à sua vivência musical já incorporada, confrontando-os e transcendendo-os. E isso ocorre propositalmente ou não, tanto na troca de experiências com os demais componentes de um grupo como em uma atividade de composição individual. Os elementos serão escolhidos e montados por ele, de acordo com o seu nível musical, naquele momento.

Musicalmente falando e voltando-se para o ensino da música atual, Gainza (1988, p. 101) nos fala que “o objetivo específico da educação musical é musicalizar, ou seja, tornar um indivíduo sensível e receptivo ao fenômeno sonoro, promovendo nele, ao mesmo tempo, respostas de índole musical”. Schoenberg (1993, p. 27), referindo-se à composição musical – mas que estendo ao ensino da música de modo geral, pois denota sentido semelhante –, nos diz que os “requisitos essenciais para a criação de uma forma musical compreensível são a lógica e a coerência”.

Paz (1995, p. 17), lembrando as propostas de Villa-Lobos, afirma que a música do compositor “deve ser a revelação verdadeira de sua alma”. Swanwick (1979, p. 43) assinala que o processo composicional permite diversas “formas de invenção musical”. O autor profere também que “tocar e compor podem complementar-se, e novos insights adquiridos em um domínio podem servir a outro” (2003, p. 95). A música, de acordo com Fregtman (1993, p. 60), “é uma capacidade inerente ao ser humano e todos podemos encontrar um veículo de expressão sonora autêntico”.

Aproveitando e partindo da pré-experiência musical e cultural do aluno, a escola pode instigá-lo a conhecer e a vivenciar novas compreensões musicais, alargando seu universo cultural e ajudando-o a perceber/conhecer parte da diversidade e pluralidade cultural. O importante é que a escola, seu novo reduto cultural, possa garantir-lhe um espaço para vivenciar e compartilhar práticas musicais distintas, seja ele possuidor ou não de uma habilidade musical.

A música instiga o educando – como curioso e sedento em aprender que é – a experimentar e criar, ajudando-o a formular pensamentos e ações imprescindíveis à sua formação. Pensar em música enquanto movimento artístico dinâmico e social é se aperceber do riquíssimo universo sonoro-musical, propulsor de novos caminhos, de novos paradigmas – educacional, mas também social e científico. A composição musical permite que o aluno exteriorize seus pensamentos, e isto não apenas no âmbito musical, pois ele tem ainda a oportunidade se comunicar com a sociedade, com a comunidade local, com a escola e com ele mesmo.

Sendo assim, nesse conglomerado que acabei de expor, podem ser trabalhados gêneros, ritmos, texturas, construções melódicas, textos, prosódias, performances instrumentais e vocais, além de aspectos estilísticos, históricos e socioeducativos imersos. Tudo que possa trazer sentido e interconexões de ideias afloradas no espaço musical escolar de múltiplas possibilidades.

Referências

DUARTE, Mônica. A prática interacionista em música: uma proposta pedagógica. Debates – Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, Rio de Janeiro, n. 4, p. 75-94, 2001.

FREGTMAN, Carlos D. O tao da música. 9. ed. São Paulo: Pensamento, 1993.

GAINZA, Violeta Hemsy de. Estudos de psicopedagogia musical. 3. ed. Tradução de Beatriz A. Cannabrava. São Paulo: Summus, 1988.

NOGUEIRA, Marcos. O imaginário metafórico da escuta. Semiosfera - Comunicação e Cultura, Seção Imaginário Plural, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, ano 3, n. 4-5, 2003. Disponível em: . Acesso em: 13 jul. 2007.

PAZ, Ermelinda A. Um estudo sobre as correntes pedagógico-musicais brasileiras. 2. ed. Rio de Janeiro: Cadernos Didáticos UFRJ, n. 11, 1995.

SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. Tradução de Marisa Trenche de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva e Maria Lúcia Pascoal. São Paulo: Fundação UNESP,1991.

SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. Tradução de Eduardo Seincman. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1993.

SWANWICK, Keith. A basis for music education. London: Routledge, 1979.

______. Ensinando música musicalmente. Tradução de Alda Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003.



[1] No período Barroco surgiu a Teoria dos Afetos, preconizando que a música era capaz de provocar e representar emoções, doutrina esta seguida por vários compositores.

quarta-feira, 3 de março de 2010

IDENTIDADE CULTURAL E MUSICAL NA ESCOLA DO NOVO MILÊNIO

Roberto Stepheson
professordemusica@yahoo.com.br

Rio de Janeiro, dezembro de 2009


"A música é a linguagem universal - não precisa ser traduzida:
é assim que a alma do artista te fala ao coração."
BERTHOLD ALIERBACH


A música tem evoluído a largos passos. Primeiramente surgiu o canto, em seguida os instrumentos musicais e depois vieram os aparelhos e tecnologias que possibilitaram guardar e reproduzir fielmente o que fora produzido pelos músicos. A partir daí, essa música passou a ser compartilhada por um número cada vez maior de ouvintes, que antes só podiam entendê-la sonicamente em momentos únicos, principalmente em execuções particulares ou em concertos ao vivo. Com a sistematização de seu ensino, educadores e pesquisadores tiveram a possibilidade de discerni-la de forma mais ampla, percebendo suas implicações na vida cotidiana do educando. Este, por outro lado, apresenta uma bagagem relevante dada às conexões estabelecidas junto ao seu reduto cultural e também pelas influências dos meios de comunicação e avanços tecnológicos que acontecem cada vez mais rápidos e inevitáveis.

Os avanços tecnológicos e sociais acontecem cada vez mais rápidos. E, com a mesma rapidez com que são gerados e discernidos, são dissipados quase que instantaneamente em todo o globo terrestre. Como, então, a Educação pode ficar alheia a isso tudo? Digamos que nos dias de hoje isso é quase impossível. Claro que pode e deve haver algum tipo de filtragem nessa avalanche de informações, algumas errôneas e estereotipadas. Até mesmo para evoluirmos (e proteger-nos), é preciso saber o que está acontecendo à nossa volta e, particularmente falando, nos embrenharmos em questões relacionadas à música e ao seu ensino que inferem na construção do saber do sujeito, e que, obrigatoriamente, passam pelas transformações tecnológicas e influências dos meios de comunicação, pela construção da identidade cultural, pela autonomia, enfim, tudo que se relacione com a nova era e com a nova Educação, esta, nem tão nova assim.

Ao longo de sua história, as sociedades modificam-se e estabelecem novas formas ao modo de pensar e agir das pessoas. Há profundas transformações que estabelecem novas relações e tomadas de decisões, levando o sujeito a assumir, por conseguinte, também novas identidades na pós-modernidade. As tecnologias se firmam como um fator substancial na conformação da sociedade atual, principalmente no que se refere aos processos de comunicação, presentes nas mais distintas área. Os meios eletrônicos, por exemplo, foram significativos ao diminuírem distâncias e aproximarem pessoas no tempo, possibilitando novas conexões.

Com advento do computador, do formato mp3 e da internet, as relações refizeram-se. Multiplicaram-se estúdios de gravação, agora mais acessíveis, e a divulgação passou a ser feita também pelos artistas independentes e pelas pequenas gravadoras e produtoras. Os próprios artistas puderam comercializar ou disponibilizar na websuas músicas e materiais em blogs, sítios pessoais, sítios de veiculação de vídeos como o YouTube, acessado por milhões de pessoas diariamente.

A respeito das modificações sociais e da crise de identidade do indivíduo por conta das modificações, Stuart Hall nos diz que as velhas identidades por um grande período estabilizaram o mundo social. Contudo, estão ruindo e levando ao aparecimento de novas identidades e, por conseguinte, levando também à fragmentação e a uma crise de identidade do indivíduo moderno, que era tido até então como um sujeito unificado. Isso tudo, participante de um processo maior de mudanças, "está deslocando estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social" (HALL, 2005, p. 7).

Nesse viés, por muito tempo as gravadoras multinacionais - BMG, EMI, Sony Music, Warner, Universal, entre outras - ditaram os rumos da música e estabeleceram sucessos instantâneos nas emissoras de rádio e TV em esfera mundial. Até por que detinham, devido o alto custo tecnológico e operacional, boa parte do processo fonográfico: gravação, fabricação e distribuição. Foi o caso, por exemplo, do álbum "Thriller" do cantor e dançarino Michael Jackson lançado mundialmente em 1982 pela Sony Music. Vendeu rapidamente milhões de cópias e alcançou gigantesco sucesso nas rádios e nosclips de TVs, encabeçando por um período "acima do normal" o topo da lista das músicas mais tocadas.

É esta situação que vivenciamos na sociedade atual, resultado das contínuas transformações e articulações. Além do maquinário e da tecnologia à nossa disposição, há cada vez mais um volumoso acúmulo e dissipação de dados e informações que chegam praticamente a todas as áreas do conhecimento, inclusive na Educação Musical. E, nesse contexto, os meios de comunicação assumem, por assim dizer, um papel substancial, pois intervêm nas relações sociais, nas construções de identidades, influenciando modos de ser, de agir e de pensar.

Comungo com o Educador Musical Keith Swanwick quando nos diz que fazemos parte desse conglomerado e que o "discurso musical, embora inclua um elemento de reflexão cultural", possibilita a "refração cultural" e nos permite "ver e sentir de novas maneiras". Para o autor, não "recebemos cultura, meramente. Somosintérpretes culturais". E a música "não somente possui um papel na reprodução cultural e afirmação social, mas também potencial para promover o desenvolvimento individual, a renovação cultural, a evolução social, a mudança". E que a música, como forma de discurso com implicações múltiplas, pode ser um veículo de transformação de um mundo diferente por vir, pois se combina com os demais discursos e estabelece-se como uma ligação "entre os indivíduos e entre diferentes grupos culturais", podendo ir "além de suas relações com origem locais e limitações de função social (SWANWICK, 2003, p. 40-45). Diferentes concepções e expressões culturais são assimiladas e identificadas. Outras, todavia, são descartadas instantaneamente. Não que a tecnologia e seus produtos ditem agora os rumos da Educação. Mas eles entram, sim, como mais um elemento a participar da construção do conhecimento e de concepções estéticas. Como negar o rádio, a TV, a internet e os aparelhos digitais incorporados à vida de todos nós, inclusive do educando?

Antes de ingressar na escola o educando já dispõe de uma identidade cultural e consequentemente, de uma bagagem musical relevante, dadas as conexões que se estabelecem continuamente com o seu meio e ao longo de suas experiências de vida. Acontece no engajamento familiar, no círculo de amigos, nas práticas sociais, ou mesmo como ouvinte do conglomerado à nossa volta gerado pelos meios de comunicação. Na escola, por outro lado, este aprendente pode repensar e estruturar um senso musical mais elaborado, contextualizado, direcionado a um propósito específico e relacionado às áreas do conhecimento que o cercam neste ambiente propício.

O que acontecerá é incerto. Até porque, como nos fala José Wisnik, não "se sabe o que será triado, no futuro do grande fluxo da música do século XX. Séculos muito menos convulsionados pela explosão das quantidades, não souberam". Para o autor, que destaca ainda a universalização musical, o "nosso deslocamento perante a música do século quanto a seu significado futuro não é propriamente novidade" (WISNIK, 1989, p. 204). E para Swanwick, com a manipulação, transmissão eletrônica, processo de gravação e geração de sons, levou tudo isso a "uma abertura de novas possibilidades" (SWANWICK, 1993, p. 25-26).

Como consequência inevitável, somos remetidos a muitos caminhos que, por vezes, traz -nos inquietações: A pós-modernidade que estamos vivenciando será a glória dos mais fortes ou será o fim das "culturas mais fracas"? Ou então levará tudo isso a contínuos cruzamentos, pluralismos ou mesmo a uma homogeneização cultural, talvez pasteurizada, afetando inevitavelmente a Educação? Fazer o quê? Particularmente, qual o novo sentido e novos paradigmas no ensino musical? Resistir, inovar, esperar, atualizar-se, abdicar, sucumbir? São perguntas que ainda não podemos responder. O que não invalida procurarmos, não necessariamente as respostas, mas os significados e direcionamentos que se apresentam hoje, além dos que estão por vir.

Pensar em um ensino de música atualmente é dirigir-se ao real, ou pelo menos tentar, e a partir dele construir e alicerçar-se em uma prática que não seja somente longitudinal, ambigua e inaplicável. E isso não significa renegar o magnífico acervo cultural construído até o momento. De forma alguma. Mas também não mais se valida compartimentalizar de maneira estanque o saber, fincando-se somente no passado e não participar da construção do (novo) conhecimento que está à volta, de várias formas.

O ensino da música na escola regular possibilita também uma reflexão a respeito do papel desta cultura (musical) na sociedade onde estamos inseridos. E, como já mostrou o pesquisador e musicólogo Murray Schafer, nos invocando para uma escuta consciente, certamente não há como escapar do fato de que hoje a música e os sons (provocados) tornam-se cada vez mais presentes (e onipresentes). Haja vista as rádios, internet, celulares, aparelhos sonoros que nos acompanham corriqueiramente, seja na sala de aula, em casa, no lazer, no trabalho, carro, metrô, ônibus ou mesmo nas celebrações religiosas (SCHAFER, 1991, passim).

Questionar e procurar entender como a música e as tecnologias da comunicação atuam sobre o educando é uma das preocupações de muitos educadores e pesquisadores da área musical. Na música e em tudo que está à sua volta é preponderante buscarmos a compreensão das mudanças que já se apresentam e que se estabelecem no nosso dia a dia. O momento que estamos vivenciando requer, pelo menos, um olhar mais crítico por parte de todos os segmentos da sociedade, pois presenciamos rápidas e contínuas transformações, que trazem incontestáveis benefícios, mas também o inverso.

De certo, o novo e a modernidade amedrontam. Mas, ao mesmo tempo, nos fascinam e nos fazem evoluir. O velho não significa obsoleto, mas o novo não pode ser negado, sob pena de se perder e, por ironia, tornar-se obsoleto e inaplicável.

Paulo Freire nos fala que é "próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa do velho não é apenas o cronológico". O velho mantém sua validade devido a tradição, e continua novo, continuando Freire, por marcar "sua presença no tempo" (FREIRE, 1996, p. 35).

Nessa incessante busca e diálogo, respostas satisfatórias hão de surgir e, em contrapartida, outras provavelmente não poderão ser respondidas, pelo menos de imediato. E isso nos impulsiona à frente, sempre. Não as respostas, mas a certeza de que nos renovaremos, de que estaremos sempre a aprender em uma inesgotável fonte, atingindo patamares até então inimagináveis.


REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. Tradução de Marisa Trenche de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva e Maria Lúcia Pascoal. São Paulo: Fundição UNESP, 1991.

SWANWICK, Keith. Permanecendo fiel à música na educação musical. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 2., 1993, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: ABEM, 1993. p. 19-32.

_______. Ensinando música musicalmente. Tradução de Alda Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003.

WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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